Devo começar por esclarecer que eu sou um alfacinha de gema: nasci e vivi em Lisboa até acabar o curso. Saí depois por nove anos e regressei recentemente. Conhecia muito bem a cidade quando parti, e continuo a conhecer, no que diz respeito a pontos de referência. Mas estive fora muito tempo: o tempo suficiente para não conhecer muitos dos locais da cidade que pessoas da minha idade, que cá ficaram, conhecem.
Um exemplo paradigmático é o “Lux”, onde de resto nunca estive. A primeira vez que ouvi falar no “Lux”, sem o saber, foi quando li, num artigo do Miguel Sousa Tavares
no Público, a expressão “esquerda Lux”. Percebi a quem é que o Miguel se referia, mas associei o “Lux” à conhecida marca de sabonetes. Julguei que, por alguma razão (talvez um anúncio...) o sabonete “Lux” estivesse associado à “esquerda Lux”. Ou então talvez, por algum motivo para mim obscuro, o Miguel Sousa Tavares conhecesse os hábitos de higiene pessoal de Ana Drago ou Miguel Portas.
Tudo isto para dizer que por vezes sinto-me um estranho em Lisboa, a cidade onde cresci. Em particular, não conheço praticamente nenhum dos locais que a Marta Rebelo referiu no seu texto da semana passada. O único lugar que eu conheço, simplesmente de nome, é o “Eleven”, do relato da minha irmã, cujo trabalho é ligado à Medicina, e que por pura coincidência ainda na semana passada teve um jantar de uma conferência nesse restaurante. (Os médicos adoram fazer as suas conferências nos locais mais luxuosos;dizem-me que é dos patrocínios da indústria farmacêutica. Só por comparação - e desculpem se estou a falar muito de mim - eu sou físico, e o meu orientador costuma dizer que, num banquete de físicos, as pessoas mais bem vestidas são os empregados de mesa.)
Quis o destino que eu, enquanto estive fora, vivesse nas duas “capitais do mundo”, Nova Iorque e Paris. E que eu tenha o enorme privilégio de, graças a isso, me sentir em casa nessas duas cidades. “Sentir-me em casa”, numa cidade, é saber fugir aos locais destinados aos turistas endinheirados. Paris não é só os Grands Boulevards ou o Bd. Saint Germain: também é Montparnasse (para um canard) ou a Butte Aux Cailles (para um boudin noir). Nova Iorque não é só o Rockefeller Center. Na Grande Maçã encontrar locais que não se destinem a turistas endinheirados não é fácil à partida, mas é possível. E nos arredores, como referi a semana passada, é possível comer “lagosta com todos” por menos de dez dólares. Ambas as cidades têm muitos locais principalmente destinados a fazer dinheiro com os turistas, mas recebem um volume de turistas que Lisboa não recebe e nem receberá. Apesar disso, mantêm uma vida própria: não dependem dos turistas. O comércio, a restauração, a cultura são para todos os habitantes (salve as desigualdades sociais, que principalmente em Nova Iorque são muitas), e não só para os turistas.
Posso estar a ser algo injusto, não conhecendo muitos desses locais (por não me atraírem), mas o que me deixa mais apreensivo em Lisboa é que, nestes últimos anos, parece ser uma cidade mais preocupada com os turistas do que com os seus habitantes. E, por isso, uma cidade muito pouco acolhedora. Principalmente para quem, como eu, aqui cresceu e sabe o que deveria esperar. E isto é um erro crasso: não são os turistas que vão dar vida ao centro da cidade e às zonas históricas todos os dias, todo o ano. Em Nova Iorque ou Paris há zonas que sobrevivem assim (só graças aos turistas), mas Lisboa não tem esse potencial. Por isso Lisboa tem de pensar mais sobretudo em quem cá trabalha e mora em casa alugada ou nos arredores. Nos jovens trabalhadores precários, a maior parte licenciados e doutorados. Nesse aspecto Lisboa teria muito a aprender com o Porto e com cidades portuguesas mais pequenas, com menos atractivos culturais mas uma qualidade de vida melhor.
Uma vez mais, não conheço a «Wallpaper», a revista que a Marta Rebelo refere. Mas creio que faríamos melhor se em alternativa prestássemos mais atenção a guias como o “Time Out”, ou o “Let’s Go!”, ou o “Lonely Planet”.
Publicado também no Cinco Dias.
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