Nascia a 21 de Outubro de 1772, um dos grandes esgazeados da nossa Espécie, e um dos amigos deste blog. Se consultarem uma enciclopédia qualquer é provável que o encontrem definido como poeta, crítico literário, teólogo, filósofo, formulador de uma teoria estética revolucionária, entre outros disparates. Mas rogo-vos: entalem o bocejo e continuem a ler. Vasculhem até, se estiverem para aí virados (e tiverem os mesmos problemas em adormecer que eu tenho) a biografia de 2 volumes escrita pelo Richard Holmes. Depois leiam o que o próprio Coleridge teve a dizer sobre a sua vida. Nas cartas, nos Notebooks, e especialmente na Biographia Literaria - a autobiografia mais exuberantemente espatafúrdia da Literatura, que ainda por cima vem mascarada de "teoria" literária. Prometo-vos um fartote dos antigos.
Coleridge foi também, além dos outros títulos oficiais, o fundador oficioso de uma longa tradição: a do artista como esponja. Mantida por Poe, Faulkner, Lowry, Dylan Thomas, Brendan Behan, Burroughs, Capote, et al, cada um com os seus venenos de eleição, e todos dedicados a celebrar (nas palavras do aborrecidamente sóbrio Saul Bellow) "a seguinte proposição: a consciência é uma coisa terrível e deve ser evitada a todo o custo". O custo, por norma, é elevado. Coleridge, por exemplo, passou os últimos 30 anos da sua vida com prisão de ventre, e com pavor de adormecer, devido aos pesadelos provocados pelo ópio.
Virginia Woolf, que escreveu sobre a degradação do impulso criativo com uma clareza assustadora, escancarou o mito: Coleridge (e aqui podemos extrapolar: "o Artista") não sabotou o seu talento com o consumo excessivo de ópio; o que Coleridge fez foi consumir excessivamente ópio para dissimular o que ele suspeitava ser o rápido desaparecimento de um talento moribundo. Nos últimos anos da sua vida, tornou-se um escritor quase obsessivamente não-sistemático: o que nos resta dessas décadas é uma amálgama (não raras vezes brilhante) de fragmentos, pensées, notas soltas, marginalia e cartas. Sobretudo cartas. Se pensarmos bem, a plataforma ideal para abandonar uma ideia a meia-frase, e com uma audiência cativa que podia aplaudir com relativa rapidez uma intenção em vez de uma obra completa. Há dezenas de referências a livros que Coleridge planeou mas nunca chegou a escrever, por estar demasiado ocupado a drunfar-se.
Ou a chular regimes de meia-pensão, o que fazia como ninguém. Era frequente cravar estadias em casa de amigos, prometendo ficar apenas alguns dias, e barricar-se depois no meio de uma muralha de papéis e livros, acabando por ficar meses a fio. O seu último médico, o quase-santo Dr. Gillman, receando que o vício de Coleridge estivesse a ficar fora de controlo (até no séc. XIX havia eufemistas), acolheu-o em sua casa em 1818 para uma espécie de detox intensiva, e teve de o aturar durante 16 anos. E o mais estranho nesta história é que Coleridge (como Heraclito) era essa figura sempre garante de boa comédia: um hipocondríaco que detestava médicos. A sua vida está repleta de incidentes, entre o escabroso e o patético, resultantes desta contradição. Como o ter de se sujeitar a uma série de enemas durante um cruzeiro até Malta. Ou o tentar tratar uma doença venérea esfregando nos genitais uma solução doméstica de vinagre, chumbo e pão ralado.
Mas o paradoxo era, nele, um estilo de vida. Coleridge foi o homem que tentou sistematizar o seu horror a sistemas numa teoria coerente; que tentou curar a sua fobia da medicação tornando-se opiómano; que pregava um Cristianismo ortodoxo e pejava os seus textos com negações casuais da verdade da Ressurreição e ridicularizações da Eucaristia. O seu erro (um erro exumado pelos que nele tentam descobrir uma filosofia estética ou uma teologia organizada) foi o de tentar aplicar um talento meramente especulativo a tarefas logísticas. A sua escrita está ao seu melhor quando se limita a polvilhar de metáforas inesperadas uma série de ideias sem qualquer encadeamento. Mas, tipicamente, Coleridge continuou, até aos últimos dias, a planear tratados morais.
Um farrapo de humanidade, em suma, mas que transmite a ideia (rara) de ter estado sempre penosamente consciente de todos os seus defeitos. Era excelente no insulto (normalmente o sinal de um intelecto superior) mas as melhores farpas eram auto-infligidas. Na Biographia, ou nas cartas, é frequente encontrarmos a demolição rigorosa de um pai que abandona os filhos, de um amigo com quem não se pode contar, ou de um tipo oleoso que não paga as dívidas que contrai - e é de si próprio que ele está a falar.
O que fica disto tudo é a prosa, claro, que é magnífica. Da poesia não falo, porque quase não conheço - mas não me parece grande coisa.
Costumava dizer-se (aprendi esta com o Bloom) que Coleridge foi o último homem a ler tudo. Acrescento: foi também - apesar do ridículo que permeia muito do que escreveu, disse e fez - um daqueles raros artistas que nos deixam com vontade de fazer o mesmo.
(Nota: em homenagem ao estilo de quem tenta homenagear, este texto foi escrito de madrugada, sem método, sem quaisquer esquemas ou notas auxiliares , e sob a influência de - à falta de ópio - copiosas quantidade de Coca-Cola fora de prazo. Por uns instantes ainda considerei a hipótese de fazer umas rimas, mas isso já seria abusar da minha própria paciência, quanto mais da vossa.)
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