Wednesday, July 18, 2007

Tenho muitas dúvidas sobre estas coisas

Não tenho dúvidas. O álbum "Tintim no Congo" é seguramente o pior momento da obra de Hergé. E diga-se, não sou só eu que o acho... o próprio acabou por o definir como "um pecado da juventude".
O álbum é, de facto, péssimo. Racista, desumano e cruel(...)
Tintim pergunta a uma turma de crianças negras quanto é 2+2 e não obtém resposta, mesmo depois de insistir (coisa que aliás continuará a fazer em vinhetas posteriores, sempre sem sucesso). Noutras vinhetas, Tintim deparar-se-á com a preguiça de um conjunto de negros, com erros sucessivos na oralidade e superstição extrema, com a subida de Milou ao trono dos pigmeus, com a mesquinhez na disputa por um chapéu e com a estupidez pela solução final, e por aí fora.(...)
No meu entender, todas estas razões seriam suficientes para a retirada do livro da estante dos mais novos. Para estas realidades, da violência, discriminação e racismo, já chegam as imagens e as palavras que os noticiários vomitam sem contenção, a qualquer hora do dia, para todos os públicos, incluindo o mais jovem (...)
A livraria Borders e a Waterstone's, que tomaram a iniciativa de mudar a obra de secção, também estiveram bem. Tendo o bom-senso de não proibir a obra, alteraram a classificação da mesma, permitindo aos adultos que a queiram consultar e comprar de o fazer. Mas, uma vez que o livro tem cenas claramente excessivas e, pior que isso, coloca como vilão (perante os valores ecológicos e de igualdade contemporâneos) aquele que deve ser o herói, símbolo de toda a valentia na defesa de causas nobres e humanas, as livrarias libertaram as crianças de encontros, desilusões e modelos errados que a obra poderia proporcionar. (...)


Cai por aqui um granizo inconcebível, dizem que estamos em Julho, um cavalo a 8/11 dá um trambolhão a quinze metros da meta, o Purovic é apanhado em dezassete foras-de-jogo, o estado das coisas é genericamente lamentável, eu ando aqui a preocupar-me com banda desenhada e, bom, enfim, devo dizer que não gostei mesmo nada deste post no Comboio Azul, por variadíssimas razões, das quais tenciono explicar algumas.
Começando por baixo, parece-me que Tintim no Congo é "racista, desumano e cruel" da mesma maneira que certas nuvens no céu se assemelham a ovelhas, saxofones ou cafeteiras Moulinex; é preciso tiranizar o ângulo de visão e estar à procura do que se quer ver. Não venho aqui defender o indefensável, nem cair no ridículo de negar os aspectos menos felizes do álbum, mas é-me abominavelmente custoso encontrar justificação - neste debate, como em tantos outros - para um vocabulário crítico de tal forma inflacionado que o juro retórico assuma a forma de "racista, desumano e cruel". Mas admito ter dúvidas sobre isto, o que me coloca em desvantagem imediata perante qualquer pessoa que não as tenha. O Comboio Azul não parece ter grandes dúvidas sobre isto. "Não tenho dúvidas", para não deixar dúvidas, é a primeira frase do post, o que me deixa algumas dúvidas. Talvez isto não seja nada mais grave que uma falha nos circuitos de distribuição das dúvidas, porque é tristemente frequente eu sentir o peso de dúvidas a mais, o que me faz suspeitar que provavelmente ando por aqui há anos a sentir as dúvidas de terceiros, incluindo as do Comboio Azul.
O Comboio Azul também acha que "há ali claras referências racistas (mais que paternalistas, como já li por aí)". Eu, recheado de dúvidas, acho que se nota mais sobranceria colonial do que racismo, como leio por "aí" e por "aqui". "Racismo", no meu dicionário, vem definido como uma «doutrina que tende a preservar a unidade da raça e assenta na suposta superioridade de uma raça que se confere o direito de exercer domínio sobre as outras», e também como «hostilidade face a um grupo étnico diferente».
É possível fazer várias leituras de Tintim no Congo, mas descortinar naquelas vinhetas resquícios de "doutrina" ou de "hostilidade"está muito além das minhas capacidades hermenêuticas. Eu leio e releio e não vejo doutrina ou hostilidade nenhuma. O que lá vejo é o espectro caricaturizado de uma realidade colonial espacialmente distante, filtrada pela imaginação caótica de um génio em pleno processo de formação moral e artística. O que lá vejo é o paternalismo cultural algo ridículo que existia nos meus bisavós, e em menor grau nos meus avós, e que se foi desvanecendo nas gerações seguintes. O que lá vejo não é necessariamente louvável, mas duvido que represente uma ameaça para quem quer que seja.
É indiscutível que os africanos desenhados no livro são caricaturizados (os lábios grotescamente inchados, etc), mas, e porque nestas coisas é por vezes necessário reiterar o pateticamente óbvio, convém lembrar que estamos a falar de bonecos num livro de banda desenhada, e que a cabeça do próprio Tintim é um pêssego corado com dois furinhos no meio.
A simples operação matemática que elude uma sala de aula inteira pode ser interpretada como "racismo" por um adulto familiarizado com os semáforos do prejuízo, e que saiba muito bem aquilo de que está à procura. Uma criança, que por norma não lê um texto à procura de sintomas, poderia simplesmente sentir empatia com as naturais e familiares dificuldades matemáticas de outras crianças.
Porque a questão de fundo é essa: quem sucumbe à tentação estruturalista de olhar para um álbum de BD como um atalho para diagnosticar maleitas culturais arrisca-se a encontrar inúmeros elementos objeccionáveis. E se "todas estas razões seriam suficientes para a retirada do livro da secção dos mais novos" então poderíamos usar as mesmas razões para esvaziar a secção por completo. Há um livro de Júlio Verne (não me lembro qual ao certo, mas desconfio que é o do balão) em que os protagonistas disparam sobre nativos africanos porque os confundem com babuínos. E isto para não falar de Mark Twain ou H. Ridder Haggard, cujas obras estão pejadas de vocabulário racial duvidoso. Vamos levar tudo para as prateleiras de cima? E quanto à questão da violência sobre os animais: vamos proibir os Looney Tunes a menores de 18? Os danos infligidos ao Wile E. Coyote pelas geringonças da Acme Corporation equivalem a mil cartuchos de dinamite em mil rinocerontes infelizes. Já que estamos embalados: toda a série do Astérix pode ser avaliada como potencialmente ainda mais perigosa para crianças, uma vez que estas apenas costumam apreender a primeira camada de significado, que é a estereotipização sucessiva de culturas e nacionalidades inteiras, permanecendo alheias à segunda camada, que é o comentário satírico e auto-referencial a essa mesma estereotipização. Astérix para a estante das graphic novels, só por via das dúvidas?
Acredito, ainda a chapinhar no meu charco de dúvidas, que uma criança sozinha não vai encontrar nada nefasto em Tintim no Congo. Li esse álbum específico pela primeira vez com cinco ou seis anos; li-o como uma aventura ao longo da qual Tintim auxiliava algumas vítimas, derrotava alguns vilões, e massacrava alguns animais. Só na adolescência tardia consegui entender que parte do conteúdo era problemático, e consegui lá chegar em razoável forma cívica, sem dinamitar nenhum perissodáctilo nem aderir à Frente Nacional.
Muitos comentadores na imprensa e em blogues ingleses acreditam, tal como o Comboio Azul, que a passagem do livro para a secção dos adultos foi uma boa solução de compromisso, e uma iniciativa inteligente. Mas não é, nem sequer pretendeu ser. A atitude da CRE (Comission for Racial Equality) não é um nobre grito de justiça; é um fútil exercício de visibilidade pública, que lhe garante uma semi-vitória institucional, mas cujas consequências negativas em muito vão exceder as positivas. No xadrês politico-cultural britânico, a CRE sacrificou um peão a troco de muito barulho e coisa nenhuma. Uma manobra, de resto, na qual teima em reincidir.
As crianças que, segundo eles, precisam de ser protegidas, não costumam ir sozinhas às livrarias, fazer compras com o seu próprio dinheiro e sem supervisão paternal. Esta farsa não poupou "encontros" a nenhuma hipotética "vítima". Antes pelo contrário. Um dos efeitos imediatos foi a promoção artificial de um dos trabalhos mais fracos de Hergé a fruto cultural proibido, uma Laranja Mecânica para a geração P2P. E o álbum, entretanto, subiu ao top-ten de vendas na Amazon.
O queixoso que originou tudo isto encontrou o livro na secção de literatura juvenil (não infantil, como já li "por aí"), protegido por uma tira de papel alertando para o conteúdo potencialmente problemático, e com uma nota dos editores contextualizando a obra. A solução de compromisso era esta. A iniciativa inteligente já tinha sido tomada. Mas o senhor decidiu ignorar o compromisso; decidiu rasgar a tira e ler o livro; decidiu, em suma, chocar-se, uma das decisões mais fáceis de concretizar dentro de uma livraria, seja qual for a secção. Basta ter o equipamento mental adequado.
O outro resultado tangível do processo foi a oferta - na já cansativamente habitual bandeja perfumada - de munições aos guerrilheiros anti-sistema, os tais patrulhadores dos patrulhadores que tanto irritam o Comboio Azul e que tanto me irritam a mim, e que rejubilam à menor oportunidade para fulminar a "tirania do politicamente correcto", que, de resto, se assemelha cada vez mais à caricatura imbecil que dela fazem.
Entidades como a CRE, cujo objectivo é combater activamente um problema real e sério, não deviam contribuir para a sua trivialização, nem desperdiçar crédito mediático a atacar fantasminhas, muito menos com exigências histéricas e desproporcionadas. Falsificações do passado, por menor que seja a escala, e por mais benignas que sejam as intenções, nunca melhoraram o futuro de ninguém. Sobre isto, pelo menos, tenho muito poucas dúvidas.

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