A esta hora, algures no oitavo círculo do Inferno, segurando a sua cabeça mirrada nas mãos como um cinescópio defeituoso, está o responsável pela programação televisiva na quadra natalícia. Desconheço o panorama em Portugal, mas parece-me claro que as estações britânicas caíram nas mãos de elementos subversivos, empenhados em virar o Reino do avesso.
Porque o efeito da má televisão, ao contrário do que fomos habituados a pensar, não é soporífero, mas sim estimulante. A apatia não se instala. Há antes uma gradual acumulação de repulsas que culmina numa torrente escandalizada de pronomes pessoais e demonstrativos: "eles julgam que eu vou ficar horas a fio a olhar para isto?". O problema é que, frequentemente, eles têm toda a razão. Por motivos que têm pouco a ver com escolhas e tudo a ver com uma conspiração geométrica, fiquei mais horas em frente do televisor na última semana e meia do que no resto do ano (excluindo a altura do Mundial). E o meu sangue fervilha de indignação.
Em sociedades modernas e democráticas como o Reino Unido, são raros os motivos capazes de levar cidadãos funcionais a considerar levantamentos e insurgências; mas quatro horas seguidas daquilo e comecei a escrever panfletos marxistas na minha cabeça. Ao segundo dia já erguia cadafalsos para a família Real em Leicester Square. Precisava urgentemente de bodes expiatórios, de cordeirinhos sacrificiais. Quem é que escolhe estas coisas?
Porque o efeito da má televisão, ao contrário do que fomos habituados a pensar, não é soporífero, mas sim estimulante. A apatia não se instala. Há antes uma gradual acumulação de repulsas que culmina numa torrente escandalizada de pronomes pessoais e demonstrativos: "eles julgam que eu vou ficar horas a fio a olhar para isto?". O problema é que, frequentemente, eles têm toda a razão. Por motivos que têm pouco a ver com escolhas e tudo a ver com uma conspiração geométrica, fiquei mais horas em frente do televisor na última semana e meia do que no resto do ano (excluindo a altura do Mundial). E o meu sangue fervilha de indignação.
Em sociedades modernas e democráticas como o Reino Unido, são raros os motivos capazes de levar cidadãos funcionais a considerar levantamentos e insurgências; mas quatro horas seguidas daquilo e comecei a escrever panfletos marxistas na minha cabeça. Ao segundo dia já erguia cadafalsos para a família Real em Leicester Square. Precisava urgentemente de bodes expiatórios, de cordeirinhos sacrificiais. Quem é que escolhe estas coisas?
Mais importante ainda: quem é que me explica a ubiquidade de Patrick Stewart, esse Ben Kingsley dos pobres? Foi quase impossível usar o telecomando sem esbarrar na sua solene redoma cranial, em pleno processo de imitar um boneco de cera a imitar outro boneco de cera a imitar personagens literárias. No Channel 5, coxeava electricamente pelo casco do Pequod. Na BBC2, entretinha-se a maltratar o pobre Bob Cratchitt. A 3ª aparição demorou mais tempo a identificar. Heathcliff? Popeye o marinheiro? (Era ele próprio, afinal, respondendo a perguntas num talk-show).
A reputação adquirida por Stewart - o apodo de "instituição britânica" tornou-se já um cliché jornalístico - deixa-me estupefacto, e só o consigo explicar recorrendo a três factores assumidamente exóticos:
- a sua dicção precisa, aliada a uma voz que parece ser sorvida do exterior através de uma palhinha. Tem antecedentes, este maneirismo (Charlton Heston, por exemplo) mas Stewart galgou patamares e está a fazer escola: por vezes, é como se estivéssemos a ouvir Moisés com um silenciador enroscado na boca;
- a calvície total, que lhe confere uma estranha dignidade musculada; esta atribuição quase automática, da qual também beneficiaram Yul Brynner, Telly Savalas e o já citado Ben Kingsley é cruelmente negada aos calvos parciais, com os seus tufos, borbotos e comb-overs;
- a total ausência de carisma. O seu rosto - rigorosamente purgado de quaisquer sugestões de vida - é o ideal platónico de uma tabula rasa. O que talvez tenha sido interpretado por alguns realizadores como uma ilusória vantagem - permitindo-lhes trabalhar um sem-número de emoções. Obviamente, isto não é possível, tal como não é possível escrever a giz num quadro branco.
Estas percepções, no meio de uma insónia aparentemente incurável, são aflitivas. A partir de uma dada altura, como na psicadélica fábula Dickesca, os estigmas de Stewart pareceram propagar-se como cogumelos perigosos. Oito Patrickzinhos rodopiando pelos Alpes. Um Patrick de lata conversando animadamente com um Patrick de palha ao longo da estrada do tijolo amarelo.
Em pânico, virei-me para tradições ainda mais antigas. Na BBC1, e em horário nobre, Sua Majestade, envergando uma elegante cortina-de-noite, ocupava-se do tradicional discurso de Natal, com o vigor anacrónico de um druida gaulês colhendo o visco no meio da auto-estrada. Rodeada de crianças, lembrou-nos a importância de um diálogo contínuo entre gerações. Havia algo de errado com as suas sobrancelhas, contudo, e a sua voz parecia ser sorvida através de uma palhinha, etc, etc, etc.
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