"O século XIX inaugura, em Portugal, um ciclo extraordinariamente rico de vicissitudes políticas.
Dois regimes jurídico-constitucionais, absoluto e liberal.
Três leis fundamentais, com vigência diferida por diferentes estratos históricos.
Nove reinados curtos e atribulados.
Um governo estrangeiro (ainda que em nome de Rei português), uma abdicação (a primeira desde a fundação da monarquia), uma usurpação (a única, pelo menos sem sucesso, desde o domínio filipino) e cinco períodos de regência.
Dezenas de governos, em especial no período que medeia a fuga da Corte para o Brasil e o início das invasões francesas (1807-08) e a última intervenção do Marechal de Saldanha na vida pública (1870), com a estabilização do esquema partidário e a institucionalização da rotina do rotativismo.
Duas guerras civis sangrentas e extenuantes, repetidas revoluções, golpes de Estado, pronunciamentos militares e movimentos palacianos (especialmente até à «acalmação» propiciada pela viragem regeneradora de 1851) sucedendo-se a um ritmo vertiginoso.
Na envolvência externa, a experiência vexatória das invasões francesas, da prolongada tutela inglesa, das repetidas interferências internacionais nos assuntos domésticos, culminando no humilhante ultimato britânico.
No panorama ultramarino, de tanta ressonância político-económica como imaginária e simbólica, o trauma que se abate sobre o império, com a perda da jóia da Coroa, precedida pela elevação do Brasil a reino associado, e a posterior viragem para África.
Enfim, na dinâmica interna, a rápida degradação da imagem da monarquia e dos seus representantes dinásticos, assumindo foros de grande brutalidade e virulência a partir da organização dos primeiros círculos republicanos.
Todos estes sucessos e perturbações têm, naturalmente, um impacto ao nível do pensamento político.
Com efeito, talvez em nenhuma outra época histórica, com excepção da primeira República, que é em muitos aspectos semelhante ao período a que nos reportamos e constitui em grande medida o seu prolongamento, os contributos e polémicas políticas floresceram de modo mais vivo, alargado, intenso e participado, mas também marcados por um mais intenso circunstancialismo.
Não é em tratados, manuais ou ensaios técnicos que os encontramos vertidos, mas sim em proclamações e manifestos, preâmbulos de decretos ou de projectos de lei, discursos parlamentares, panfletos, artigos de jornal, etc. Em consequência, os debates e exercícios doutrinais, que existem e em grande número, são mais conjunturais do que científicos, sendo rara e de fraca qualidade a reflexão especulativa de fôlego independente de imediatos propósitos panfletários, jornalísticos, tribunícios ou outros."
in "Liberalismo, Democracia e o Contrário"
de António Pedro Mesquita
VER "O Portal da História"
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