Este lamentável artigo de Ziauddin Sardar, no último número da New Statesman, apresenta tantas deficiências - de interpretação, de ligação, de raciocínio, de coerência - que o leitor que consiga chegar ao fim ficará com pouco mais do que uma sucessão de interrogações para negociar sozinho. Quão a sério devemos levar isto? Porque é que este homem não está a escrever comédia? Estaremos a lidar com um pantomineiro, alguém com genuínas lacunas educacionais ou simplesmente um virtuoso da desonestidade intelectual? Tudo questões que eu próprio ponderei enquanto abria uma garrafa de água das pedras.
Confesso que desconhecia por completo o nome do senhor (um dos novos membros da Comissão para a Igualdade e os Direitos Humanos) e durante dois dias aguardei o desmascarar de uma impostura na linha da 'Sokal hoax' dos anos 90: um agregado de clichés, insuflado com a estafada terminologia pós-colonialista, plantado numa publicação reputável com o intuito de aferir e estudar as eventuais reacções.
Infelizmente, parece que o artigo é genuíno (salvo seja). E o senhor Sardar está certamente a passar ao lado de uma grande carreira, embora assim de repente não consiga imaginar qual seja.
É difícil saber por onde começar. Por um lado, os vinte parágrafos contêm erros de raciocínio, vandalismos lógicos, analogias mutiladas e falsificações puras em número suficiente para descredibilizar quase imediatamente a sua tese central. Mas por outro, essa tese central está tão diluída no pântano falacioso do artigo, que acaba por sintetizar o antídoto contra a sua própria refutação. Resumindo, o artigo de Sardar coloca-me na desconfortável e pouco habitual posição de não saber ao certo aquilo com que estou a discordar violentamente.
Em termos muito genéricos, Sardar acusa Martin Amis, Ian McEwan e Salman Rushdie (três escritores que, convém lembrá-lo, se opuseram à intervenção no Iraque) de encabeçarem uma conspiração intelectual cuja intenção é avançar os interesses do neo-conservadorismo: «Blitcons come with a ready-made nostrum for the human condition, They use their celebrity status to advance a clear global political agenda». Não contente com essa lunática, e enfaticamente não demonstrada, asserção, reduz depois toda a obra de Saul Bellow - uma das mais generosas e inclusivas que a literatura moderna nos deu - a uma mera ilustração da filosofia de Allan Bloom, e a uma incubadora de elitistas, «obsessed with the preservation of the canon».
O que é aqui ensaiado (da forma mais azelha possível) é uma reciclagem - uma actualização da terminologia "orientalista" de Edward Said, adaptada a novas circunstâncias. Mas é impossível não imaginar Said acometido de cólicas mentais quando confrontado com este amontoado de disparates. Por muito que se discorde das ideias de Said, estas eram inteligentemente defendidas, coalescendo numa teoria sólida. Já a diatribe gaguejante de Sardar assemelha-se mais a um malão de viagem comprado numa feira, no qual se tentou enfiar roupa para sete viagens diferentes. Há para ali algures uma camisa havaiana e talvez um par de galochas esburacadas, mas nada que dê para levar ao baile.
(Aprendi posteriormente que os problemas do senhor Sardar com o fantasma do "Cânone Ocidental" não são de agora: há pelo menos dois outros artigos na New Statesman em que ele se dedica a desmontar esse asqueroso panteão imaginário de "wall-to-wall white men" (no qual, estranhamente, inclui Naipaul e Jane Austen). Quanto à posição do 'obcecado' Amis, podemos encontrá-la neste excerto da introdução a The War Against Cliché: «In the long term, literature will resist levelling and revert to hierarchy. This isn't the decision of some snob of a belletrist. It is the decision of judge Time, who constantly separates those who last from those who don't.» Conversa perigosamente anti-democrática, como se vê.)
Os instantes fraudulentos são demasiados para rebater um por um. Fica aqui este, quase ao acaso, que pretende ilustrar o "preconceito Ocidental" de Ian McEwan:
«. . . we realise that Saturday really assigns a mystical dimension to western literature: the poetry of Matthew Arnold not only serves as an antidote to brutish violence, but literally saves the day at the end of the novel. As a corollary, we are forced to conclude, those who have never read War and Peace, for example, are not fully human.»
O que somos forçados a concluir é que a educação do senhor Sardar foi um grande desperdício de tempo e, no processo de distribuição das culpas, não será de todo descabido ter uma palavrinha com os seus antigos professores e perguntar-lhes porque é que ele não foi, sei lá, açoitado mais vezes.
O salto lógico entre o último capítulo de Saturday e a conclusão que Sardar tira ("those who have not read War and Peace, for example, are not fully human") é típico do seu processo mental: pregar dois tópicos isolados no vácuo e esperar que o leitor preencha o espaço vazio com a sua própria colecção de preconceitos. O que McEwan - um escritor com demasiadas nuances para Sardar - faz em Saturday não é traçar uma distinção entre o que é 'humano' e o que não é, ou mesmo entre 'civilização' e 'barbárie', mas sim dramatizar - nas palavras de James Wood (na New Republic), "a irrupção do irracional" na esfera privada:
«. . .this kind of terror is not opposed by fiction as such, but by a nobler version of the irrational -- by poetry, by song, by music, and by love. Earlier in the book, Perowne attended his son's band's rehearsal, and while the glorious blues sang out, he reflected on music's implicit utopianism -- a collaboration, "an impossible world in which you give everything you have to others, but lose nothing of yourself". (. . .) It is not fiction, then, with its habitual coincidences and unnatural encounters -- of which this book has its fill -- but the ungraspable communion of music that might be "set against the hatred of their murderers." Against a dark irrationality can perhaps be posed the enlightened irrationality of music's fleeting utopia. . .»
Este impulso didáctico numa obra de ficção pode ser debatido de mil e uma maneiras diferentes, mas tentar inclui-lo, como Sardar faz, num inexistente projecto literário neo-conservador, é extravasar os limites do comentário sério e penetrar, com exuberante alacridade, nos domínios da propaganda.
Mas é Domingo e os passarinhos espirram no jardim. Há futebol na televisão, há belas pistas de cavalos que abrem ao meio-dia e nunca fecham, há metade de um livro de Pynchon para ler até ao Natal.
O que não há é espaço para os delírios paranóicos dos outros; os meus chegam.
P.S.: Dito isto, vou esperar com ansiedade pela inevitável resposta de Christopher Hitchens, cuja truculência, apesar de previsível, é invariavelmente divertida nestas situações.
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