Foi uma surpresa a espécie de gente que (Cavaco) insistiu em levar para Belém. As nomeações para o Conselho de Estado, por exemplo, revelam uma estranha hostilidade ao Parlamento. (...) Este Conselho de Estado proclama o "esplêndido isolamento" do dr. Cavaco: a sua orgulhosa auto-suficiência.
A escolha de assessores também não tranquiliza. O assessor para Assuntos Políticos e grande nome da revista Atlântica, António Araújo, o consultor para Assuntos Políticos, o notório dr. Espada, e a consultora para a Ética e Ciências da Vida, uma açoriana, podiam perfeitamente ter saído ontem de uma caverna qualquer do Bible Belt, a berrar por Bush. Será que o dr. Cavaco, que sempre julgámos relativamente equilibrado, quer de facto embarcar numa cruzada moral contra o aborto, a pílula, o divórcio, a homossexualidade, a pornografia e o resto dos crimes sem perdão em que o "niilismo" moderno nos "poluiu"? Se quer, precisa de músculo: e tem muito músculo no dr. Carlos Blanco de Morais, da "nova direita" e da revista Futuro Presente, conhecido apologista da "maneira forte", que da imigração à nacionalidade já mostrou o seu apego à "ordem". Para acabar o quadro, há ainda o contingente "liberal". O inevitável dr. Espada, claro, papagaio por excelência do ultraconservadorismo americano; o prof. Justino, que acha o levantamento do sigilo bancário um acto de "fascismo fiscal" (fascismo? a sério?); e o dr. Borges de Assunção, consultor económico e organizador do Compromisso Portugal (esse benemérito grupo), que vem com a velha receita de "emagrecer" o Estado e reduzir impostos.
Se o dr. Cavaco resolver um dia ouvir este raminho de cabeças pensantes, põe em pé de guerra ou simplesmente em guerra a esquerda e a república. E, se puser, não se deve iludir, com certeza que perde.
(Público, 17 de Março de 2006)
Quando se tratou das nomeações para o Conselho de Estado, Jorge Sampaio fez precisamente o contrário de Aníbal Cavaco Silva. Queria que os partidos representados na Assembleia da República (excepto o Bloco, nessa altura, ainda em embrião) estivessem também representados no Conselho de Estado. Ofereceu, por isso, um lugar da sua quota pessoal ao presidente do CDS e outro ao secretário-geral do PC. O presidente do CDS, por razões que não interessam aqui, resolveu recusar. O secretário-geral do PC não recusou e o PC teve o seu assento garantido durante todo o mandato. A política de Jorge Sampaio é muito compreensível. Se a Assembleia se portava com facciosismo, ignorando uma parte significativa de si própria, competia ao Presidente repor o equilíbrio. O Conselho de Estado, sendo consultivo, não decide nada, mas na medida do possível deve representar a opinião do regime e do país. Deixar de fora o CDS ou PC diminui, como é óbvio, sua eficácia e o seu valor: e contribui para isolar o Presidente. (...)
Quanto aos conselheiros, não há de facto qualquer impedimento a que o dr. Cavaco nomeie Gengis Khan seu assessor político. Só parece estranha a concentração em Belém de gente que em princípio se julgava incompatível, ou quase incompatível, com a personagem pragmática e moderada do candidato à Presidência. (...) Um pequeno grupo de zelotas, para não dizer pior, acaba frequentemente por influenciar (ou envenenar) a atmosfera ideológica de uma instituição. O que sem eles se considerava impensável é com eles, de repente, vulgar. (...) Essas criaturas chegam com um passado, encarnam causas, trazem uma agenda e exercem funções de algum alcance. Não são o dourado de uma porta. São uma franja da direita irreformada e irreformável, que o dr. Cavaco instalou no centro da política.
(Público, 18 de Março de 2006)
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