Já era de esquerda antes de alguma vez ter ouvido sequer falar a sério em Marx ou em comunismo (na escola, na disciplina de História). Enquanto o Bloco de Leste se desfazia, a URSS agonizava e o Muro de Berlim estava prestes a cair. Entretanto eu estudava a organização interna do PCUS, o modelo leninista, Estaline e Krutchov, e a perestroika de Gorbatchov era referida no meu livro de História como uma "tentativa de abertura em relação à sociedade". O mundo organizava-se em dois blocos, que eram tratados da mesma forma pela generalidade da comunicação social (ambos sujeitos a críticas).
Não precisei de ler Marx para nessa altura formar o essencial da minha consciência política. Sendo filho de trabalhadores por conta de outrem, já achava na altura que os trabalhadores deveriam saber dirigir os meios de produção, e não uma elite improdutiva. E sempre me escandalizou como os comerciantes poderiam decidir vender os bens de consumo aos preços que bem lhes apetecesse, sem controlo. O preço destes bens deveria ser fixado pelo governo, e deveria ser tal que os tornasse acessíveis a todos os trabalhadores, de modo a que tods pudessem viver com dignidade. Da mesma forma, o governo deveria combater o desemprego com todos os meios possíveis, adaptando a carga horária laboral de modo a haver trabalho e pão para todos.
Era este o meu pensamento político quando tinha treze, quinze, dezoito anos (e no essencial, no ideal, é-o ainda hoje). Nunca li Marx ou qualquer outro dos seus seguidores para o formar, não acho que ele resulte da minha educação na escola pública (independente e não tendenciosa) ou privada (andei num externato católico até aos dez anos). Pode ter resultado de ter lido o romance Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, na disciplina de Português no oitavo ano (admito que o livro me marcou bastante). Mas no essencial estas minhas ideias resultam, tanto no meu caso como na maior parte das pessoas, da experiência de vida e do senso comum.
Também da minha experiência de vida, aliada a estas minhas convicções, resultou que a direita era "o mal". Uma paixão arrebatadora por uma miúda do PCP aos catorze anos (que será feito dela?) ajudou e muito, bem como o facto de todos os meus amigos e amigas da escola e dos dois primeiros anos da faculdade serem naturalmente de esquerda. Digo "naturalmente" porque não os "escolhia" devido ao seu posicionamento ideológico; eram mesmo naturalmente meus amigos. Mas há que acrescentar que era de Lisboa, estudei numa escola "de esquerda" (D. Pedro V - foi classificada assim num suplemento de O Independente), cuja Associação de Estudantes liderou a contestação nacional à PGA (luta em que eu também participei, o que constituiu a minha estreia no combate político). Depois, fui aluno da LEFT, e os alunos de direita da LEFT contavam-se pelos dedos de um pé.
Ser-se de direita era assim para mim, na minha adolescência, o pior de todos os defeitos que uma pessoa poderia ter.
É claro que as pessoas mais velhas (de direita e não só) dizem que nestas idades "ainda não se sabe o que é a vida", e têm toda a razão. Não que eu agora saiba o que é "a vida", mas pelo menos já vivi muito mais do que o estudante que vivia à custa dos pais, sem ter de se preocupar com nada. E é ao viver à sua custa que um tipo se apercebe de como pode uma pessoa não ser de esquerda, particularmente um trabalhador. Esta é uma realidade que eu na altura achava completamente inaceitável, que não entrava na minha cabeça. Ainda hoje custa-me a aceitar, mas creio que já compreendo melhor. Simplesmente, o comunismo por si só não foi feito para maximizar a riqueza, e muitas pessoas se calhar preferem mesmo ser exploradas, desde que no resultado final acabem por ganhar mais do que se não o fossem. Eu mesmo tenho de reconhecer que na maior parte das vezes economias baseadas no mercado livre e na concorrência geram trabalhadores mais motivados e maior prosperidade que as economias puramente estatizadas. Finalmente, muitas vezes as pessoas preferem ser simplesmente alienadas. Não querem saber. É essa a opção delas; são mais felizes assim.
Acresce a esta minha "maior experiência" uma outra forma de encarar os Estados Unidos da América. Depois do colapso da URSS os EUA, a superpotência restante, vencedora da guerra fria, eram para mim aquilo que para um dos seus presidentes (Ronald Reagan) era a URSS: o Império do Mal, o grande adversário. Durante a licenciatura fui-me habituando a estudar por livros que, em grande parte dos casos, tinham de ser norte-americanos. Aprendi assuntos que tinham sido descobertos por norte-americanos. Finalmente acabei mesmo por ir estudar para os EUA. Lá vivi uma boa parte (mais do que boa, feliz) da minha ainda relativamente curta vida. Lá conheci pessoas excelentes, das mais diversas proveniências e nacionalidades. Conheci mesmo americanos - bem diferentes do estereótipo usual. E lá estava quando se deram os atentados de 11 de Setembro de 2001, que vieram confirmar, se necessário fosse, que a maldade no mundo está longe de ser em exclusivo da responsabilidade dos EUA. Mais: veio demonstrar que nem todas as maldades são igualmente más, e que a maldade americana nem é a pior e, em certas circunstâncias em que só se pode optar entre maldades, é a maldade preferível.
Por todos estes motivos acabei por mudar a minha opinião relativamente ao "ser-se de direita". Não me tornei de direita, e nem creio que alguma vez isso venha a ser possível. Mas cheguei à conclusão de que, ao contrário do que eu pensava na inocência dos meus catorze anos, ser-se de direita não é o pior de todos os defeitos. Ser-se de direita, afinal, é algo que se tolera: é simplesmente mais um defeito como tantos outros.
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
Blog Archive
-
▼
2006
(958)
-
▼
March
(73)
- Mentira!
- Endogamia nas universidades promove fuga de cérebros
- Portugal evolui em índice de tecnologias de inform...
- God will get you for that, Filipe!
- Que confusão de brócolos
- Versão nova de fitas antigas
- A Bola em Newark
- As Editoras de DVD vendem-nos gato por lebre
- Muito em português
- No dia das eleições de Israel
- Contra o despedimento sem justa causa
- Informações complementares
- À distância de uma bofetada
- A foto e os factos
- A diferença entre o Silva e o Carreira está no coe...
- Neo-realismo com telemóveis
- O mundo é pequeno e Paris é uma aldeia
- A prosa de José Casanova
- Clareza e simplicidade
- A esquerda bem-pensante e a linha justa
- Il Dissoluto é assolto?
- Pequena questão
- O texto anterior, antes de ser reescrito...
- Utilitário... para Brecht
- A isto chama-se o sistema...
- A Revolta Francesa
- Estou tão confiante...
- Li e gostei
- Mesmo que os cantores sejam falsos como eu
- «Uma açoriana...»
- Só para chatear (ainda mais um bocadinho) o Nelson
- Balanço de Saint Patrick
- Não tem pais ricos...
- Li e gostei: Vasco Pulido Valente
- Sobre as manifestações de estudantes em Paris
- A Condessa Russa
- Em Paris, os estudantes manifestam-se
- O novo CDS-PP
- Saint Patrick no Pavilhão Atlântico
- Leões desavindos
- Cadernos quadriculados forever
- Li e gostei
- A grande pedra numa paisagem intocada
- Universo ao meu redor, Infinito particular
- Todos a Point Place, nos anos 70!
- Ele queria era ser assessor político da rainha
- Queridos comentadores e comentadoras
- O espectro do Espectro
- Mistério Juvenil
- No Coração
- Expectativas para a Fórmula 1
- O português indispensável
- Aplaudir ou não aplaudir? Cumprimentar ou não cump...
- Jorge Sampaio
- A eleição presidencial no dia da tomada de posse
- Depois da tomada de posse...
- A mulher de Lenine
- Dia Internacional da Mulher - que dure todo o ano
- Sadar e Abdur, dois irmãos afegãos relatam Guantanamo
- Good night, good luck
- Momento intimista
- Li e gostei
- Freitas e os "antifascistas" de conveniência
- O novo franchising
- A Idade de Ouro do Mundo Árabe
- Syriana e os nossos filhos da puta
- O capital e o consumo
- O Governo discorda do 3-0
- As posições do Ministro dos Negócios Estrangeiros
- São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel ...
- Ser-se de direita
- O blogue que aqui começo a construir, sempre busca...
- Porque era Carnaval
-
▼
March
(73)
No comments:
Post a Comment