Sunday, January 21, 2007

Antes do arco-íris



«This then, I thought, is the representation of history. It requires a falsification of perspective. We, the survivors, see everything from above, see everything at once, and still we do not know how it was.»

(W. G. Sebald, The Rings of Saturn)


A partir de que distância é possível discernir um padrão na desordem? Que porção do caos devemos levar em conta nessa análise? E a esporádica berlaitada psicadélica, ajuda?
Estas perguntas, com uma ou outra variação, têm estado latentes em cada página Pynchoniana, desde o início. No epílogo de V. - o seu primeiro romance, publicado em 1963 - um jovem Sidney Stencil, depois de sensatamente recusar uma pitada de hashishe no seu cachimbo, coloca a seguinte hipótese: «suppose sometime between 1859 and 1919, the world contracted a disease which no one ever took the trouble to diagnose because the symptoms were too subtle - blending in with the events of history».
Quarenta anos e cinco romances depois, um padrão começa a ser identificável na sua obra, cujo impulso central parece ter sido o elaborar de uma cripto-história da humanidade desde a Revolução Industrial. Pynchon sempre dedicou uma atenção especial aos espaços em branco no espectro oficial da Verdade, aos vácuos nas cronologias, às convulsões invisíveis que sacodem as mudanças de paradigma, e onde costumam florescer os mitos urbanos e as teorias da conspiração; não há muita obsessão subterrânea que não lhe tenha merecido algum tempo de antena, desde a colónia de crocodilos nos esgotos de Nova Iorque, à supressão de uma lâmpada perpétua pela Phillips, passando por genocídios secretos e serviços postais alternativos. O novo livro leva essa cosmologia paranóica até às últimas consequências, com resultados ocasionalmente hilariantes:

«'Back before the beggining of all, when they were designing the World -'
'They?'
'They.'
»

Mas Against the Day é também uma tentativa de diagnosticar a doença de Stencil (funcionando nesse aspecto, como uma prequela de Gravity's Rainbow, que dramatiza os seus efeitos), um diagnóstico que aspira a uma obsessiva totalidade e a cujo escrutínio narrativo nada - realidade ou lenda, facto ou mito - parece escapar.
O que acontece, e vamos tentar manter as coisas simples, é isto: Webb Traverse, líder sindical dos mineiros do Colorado, anarquista e patriarca, é assassinado por dois rufiões ao serviço de Scarsdale Vibe, um plutocrata satânico e um digno representante da not quite mitológica raça dos Robber Barons que ajudaram a construir a América. A problemática filha de Webb, Lake Traverse, apaixona-se por um dos assassinos, enquanto os três filhos reagem à tragédia de maneiras diferentes: Reef jura vingança e percorre o planeta, primeiro no encalço dos dois assassinos, e depois perseguindo troféus de ordens diferentes; Frank, cujos desejos de retribuição são mais diluídos, atravessa a fronteira mexicana, onde se envolve, quase por acidente, na revolução de Madero (Pancho Villa faz uma curta aparição); Kit, um prodígio intelectual, e o mais novo dos irmãos, faz um pacto faustiano com Vibe, que se oferece para financiar a sua educação superior - primeiro em Yale e posteriormente em Göttingen, onde conhece a irresistível matemática Yashmeen Halfcourt, ex-aluna de Riemann, e que é capaz de se bifurcar e deslocar através do tempo e do espaço. Em paralelo, vamos seguindo as peripécias dos Chumps of Chance, um grupo de aventureiros saídos - literalmente - de uma colecção de livros juvenis, que se desloca numa gigantesca aeronave movida a hidrogénio (cujo tamanho vai aumentando gradualmente), recebendo instruções de um obscuro e quase-omnisciente consórtio, e interferindo aqui e ali nos assuntos terrenos, ora seguindo o rasto a uma arma ultra-poderosa que pode ou não ter sido desenhada por Nikola Tesla, ora experimentando uma máquina do tempo que pode ou não já ter sido usada, ora procurando, com a ajuda de um insólito mapa tri-dimensional, a mítica cidade de Shambhala, que pode ou não ocultar-se debaixo das areias de um deserto asiático, e que pode ou não conter reservas inesgotáveis de petróleo, ou o segredo da vida eterna.
Na segunda metade do livro, as coisas complicam-se. Grande parte dos personagens parte para uma Europa que vacila no limiar de uma catástrofe sem precedentes; as premonições vão-se acumulando:

«What was about to emerge from the night, just behind the curve of the Earth?. . . a persistent component of black in all light that swept this lowland, flowing over dead cities, mirror-still canals. . . black shadows, tempest and visitation, prophecy, madness. . .»

Algumas páginas depois, sobrevoando os campos da Flandres, um visitante do futuro deixa o seguinte aviso:

«This world you take to be 'the' world will die, and descend into Hell, and all history after that will belong properly to the history of Hell. (. . .) Flanders will be the mass grave of History. (. . .) On a scale that has never yet been imagined. Not some religious painting in a cathedral, not Bosch, or Brueghel, but this, what you see, the great plain, turned over and harrowed, all that lies below brought to the surface - deliberately flooded, not the sea come to claim its due but the human counterpart to that same utter absence of mercy - for not a village wall will be left standing. League on league of filth, corpses by the uncounted thousands, the breath you took for granted become corrosive and death-giving

Os reencontros fortuitos vão-se multiplicando; personagens que se tinham visto pela última vez nas cavernas do México cruzam-se nas selvas de África; amantes separados em Nova Iorque reunem-se nas ruas de Trieste. A locução mais frequente nesta secção é "who should then appear but". Os desenvolvimentos teóricos da época vão sendo mencionados e trabalhados, sempre de um modo relativamente leigo-friendly: os primórdios do cinema, a teoria do Éter Luminífero, o debate matemático entre Vectoristas e Quaternionistas (a única secção onde, confesso, me perdi), pesquisas sobre o Espato da Islândia, uma variante da calcite com invulgares propriedades de refracção, e cuja capacidade para duplicar a realidade é um pouco mais do que metafórica. Abundam também longas tiradas sobre o Tempo («our fate, our lord, our destroyer») que cumpre a mesma função estruturante já familiar de livros anteriores (a entropia em V., as leis de causa e efeito em GR, a linguagem binária em Vineland e a cartografia em Mason & Dixon).
Mas é o estilo, como sempre em Pynchon, que acaba por ser a personagem principal. Tal como em V., o modo básico de narração é o pastiche, mas um pastiche modulado e filtrado pela inconfundível voz do autor, de forma que é quase impossível encontrar um parágrafo que não seja imediatamente identificável como seu. O zodíaco referencial continua imenso; num excelente ensaio, John Clute tenta ancorar o trabalho numa certa tradição da Ficção Científica, que remonta às distopias de William Morris e cujo expoente máximo é Michael Moorcock (cuja obra desconheço). De qualquer forma, a interpretação é redutora. Against the Day contém alusões literárias em número suficiente para obcecar académicos durante décadas. Uma primeira leitura permitiu identificar piscadelas de olho ao Hamlet e ao Fausto de Marlowe, a Dante e a Le Carré, B. Traven e Evelyn Waugh, Ronald Firbank e Mark Twain, Henry Adams e Júlio Verne, Raymond Chandler e Ridder Haggard, William Burroughs e Enid Blyton, Charles Dickens e Alan Moore. Há também alusões cinéfilas a John Ford, Howard Hawks e aos irmãos Marx; uma piada horrenda envolvendo o Titanic; uma série de variações já familiares sobre o Roadrunner e o Coyote (incluindo uma fantástica perseguição através de uma fábrica de maionese na Bélgica); e uma bizarra e inesperada homenagem a Dune que me pareceu dever mais ao incoerente filme de Lynch do que ao impenetrável livro de Frank Herbert.
Alguns críticos atribuíram uma relevância inquinada aos aspectos mais esotéricos deste Universo hiper-ligado, como se Pynchon, na sua velhice, se tivesse convertido ao charlatanismo New Age da malta dos cristais. Mas Pynchon, e isto não é uma opinião, mas um facto indesmentível, sabe mais sobre ciência do que qualquer outro escritor vivo, e sabe o suficiente para compreender que qualquer avanço mais brusco pode parecer momentaneamente um acto de magia. Para uma geração cuja educação foi solidamente fundada sobre a Rocha das leis Newtonianas, os primeiros passos na direcção da Teoria da Relatividade devem ter soado alguns ecos preocupantemente sobrenaturais.
O resto - fantasmas, profecias, horóscopos, e um fascínio com o Tarot que vem de longe - é puro xamanismo literário, testando a elasticidade das convenções do Realismo sem sufocar a linha narrativa, como acontece em certos descendentes menores da Escola Sul-Americana e bastardos pouco talentosos de Garcia Márquez.
É a mesma lógica que regula a criação das suas personagens, tantas vezes denegridas (stand up Kakutani) como meros cartoons. As falhas de caracterização inspiram um ressentimento crítico ainda maior porque os enredos de Pynchon, ao contrário dos jogos meta-ficcionais dos seus contemporâneos Barthelme, Coover e Gardner, por exemplo, vêm camuflados de Naturalismo. Mas a sua ficção não se esgota no aprofundamento psicológico: há outros imperativos. O tratamento que Pynchon dá aos seus protagonistas está a meio-caminho entre a rédea solta dos grandes romances Vitorianos e as grilhetas do pós-modernismo: é um despotismo iluminado, que lhes permite uma certa amplitude dentro da grelha de intenções do autor.
Intenções que, surpreendentemente, devem muito ao Puritanismo dos seus antepassados e a um posicionamento político algo ambíguo. Dados alguns elementos recorrentes na sua obra (um feroz tom anti-capitalista e uma empatia desmesurada com os desenfranchizados, etc.) tem sido tentador para alguns enquadrá-lo num enclave ideológico de esquerda. Mas Pynchon, mais do que um liberal de Long Island ou um velho hippie, é um libertário Calvinista, cuja fanática desconfiança em relação à Autoridade e descrença em qualquer forma de progresso social é contra-balançada por uma fé inabalável no Indivíduo e num estranho tipo de salvação arbitrária, uma relíquia da desesperada doutrina Calvinista da Predestinação, na qual a Salvação é uma lotaria e Deus uma gigantesca tômbola extraindo almas ao caos giratório.
Os desejos utópicos não resistem ao pessimismo de quem suspeita que a Utopia já existiu e foi irremediavelmente arruinada. Yashmeen, a dada altura, diz que viajar no tempo é uma forma falhada de utopianismo. A tendência geral desta mundivisão é para uma idealização excessiva do Passado, mas no caso de Pynchon serve para trazer à tona o seu melhor; os picos da sua escrita encontram-se naquelas prolongadas cadências, exprimindo a visão elegíaca de um ontem irrecuperável.
É uma escrita de uma intensidade quase religiosa - no melhor sentido do termo - em que todos os contratos seculares entre leitor e autor são meticulosamente rasgados. Existe, contudo, uma promessa maior: a promessa de que a Arte é a única oportunidade redentora para os que esbracejam à ilharga da História, os não-seleccionados, os Preteridos; a ideia Conradiana de que a Literatura pode e deve ser uma tentativa de distribuir a melhor justiça possível pelo Universo visível. A enorme cidade flutuante das últimas páginas, na qual «every wish, if not granted, is at least addressed», e na qual habitam os personagens arbitrariamente escolhidos pelo Autor - os Chumps of Chance, que pertencem a ficções dentro da ficção, que nunca envelhecem, e que se casam todos na mesma página, como no final de uma comédia Shakespeareana - é o símbolo visível dessa promessa, triunfantemente cumprida. Aos outros, os sobreviventes da débacle, algemados à Terra, resta-lhe a Paris do pós-guerra e uma trégua fugaz antes de Gravity's Rainbow.

(Against the Day tem 1085 páginas e a única coisa que eu queria era que não acabasse. A maior dificuldade colocada pelo livro é a de regressar: a 2007, à vida, aos livros normais.)

No comments:

Post a Comment

Blog Archive