Wednesday, January 24, 2007

Hoje ouve-se


Lost in a Roman wilderness of pain
And all the children are insane
All the children are insane
Waiting for the s...
for the s...
for the s...


- The Doors, «The End», The Doors (1967)

(Quando tinha 13 anos, no auge da minha curta enfatuação com os Doors, o filme de Oliver Stone estreou na RTP. Por motivos que não recordo, e que não vêm ao caso, passei essa noite em casa dos meus avós, e consegui, graças a uma combinação de feroz diplomacia e despudorada chantagem emocional, negociar uma inédita sessão televisiva nocturna.
O que aconteceu é algo previsível (eram os dias de leite e rosas da pré-insónia): adormeci antes de o filme começar. O factor-surpresa foi a minha avó, que fez questão de o ver do princípio ao fim, provavelmente porque eu, na minha febril campanha, tinha feito Jim Morrison passar por uma espécie de Dr. Schweitzer com laivos de António Calvário, o que lhe deve ter aguçado a curiosidade. Na manhã seguinte, entre torradinhas queimadas, perguntei-lhe o que tinha achado e ela, olhando-me com incontida censura, respondeu: "Aquele moço era um grande mafarrico".
É bastante fácil fazer pouco dos Doors. Vamos, portanto, ceder à tentação, e fazer pouco dos Doors. Começando pela música, que nos piores momentos lembra a banda sonora de um soft-porn oitentista. Alguns dos arranjos são perturbantemente parecidos com as batidas pré-definidas que vinham na memória daqueles órgãos Casio que as madrinhas tinham o hábito de oferecer antes de os pares de meias e agendas terem estendido o seu inexplicável domínio satânico sobre todas as ocasiões especiais.
Mas é claro que o pior não é isso. Os Doors têm o condão de sublimar o pior da adolescência: o pretensiosismo isolado, a pose torturada, a solenidade labrega. Ninguém está imune. A primeira vez que fui a Paris, em '95, passei a obrigatória tarde no Pêre Lachaise, e pousei para a lamentável fotografia da praxe diante da campa do artista. Está lá tudo: a cabeleira farta, o rosto sisudo, as roupas pretas, colar índio comprado na feira e até (juro) o livro de Rimbaud na mão direita. Só não tenho uma tabuleta ao pescoço a dizer "Palhaço" porque esta seria, com toda a franqueza, redundante.
Dito isto, há muito para recomendar na obra dos Doors. E convém lembrar que o grupo saiu de um meio - musical, social e geográfico - invulgarmente predisposto ao ridículo. É possível descortinar algum valor retro-kitsch em muita da psicadelia hippie da segunda metade dos anos '60, mas experimentem sujeitar as vossas sensibilidades modernas a «Atlantis» de Donovan ou às piores coisinhas dos Jefferson Airplane. Em comparação com "My antediluvian baby, oh yeah", a fantasmagoria carnavalesca dos Doors - as cenas esquisitas dentro da mina de ouro - parecem não apenas originais como positivamente benéficas e conducentes à Paz Universal.
Mas se precisarem de um motivo adicional para voltar a ouvir «The End», o Pastoral Portuguesa está aqui para ajudar. Coloquem o cd na aparelhagem (não funciona com Real Audios nem I-pods) e deixem a faixa correr até ao minuto 3:31, em que Morrison inicia o verso "Waiting for the summer rain"; quando ouvirem o sibilar do primeiro 's' de 'summer', primam ao de leve o botão rewind, soltando-o logo de seguida, repetindo novamente o processo assim que voltarem a ouvir o 's'. Não é difícil apanhar o jeito, e assim que o conseguirem, terão o privilégio de ouvir, no conforto do vosso lar, o Rei Lagarto, o Batman, esse grande mafarrico, gritar um portuguesíssimo 'foda-se' num loop contínuo. God is in the details.)

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