Tuesday, January 2, 2007

José Sousa Ramos (1948-2007)


Foi dele a primeira aula a que assisti no ensino superior, num anfiteatro do Pavilhão Central do Instituto Superior Técnico, às oito da manhã de um dia de Outubro. Foi dele o primeiro email que recebi na vida (numa altura em que nem fazia a mínima ideia de como se trabalhava num computador, e ninguém suspeitava ainda o que era a internet), numa área que os alunos tinham nuns computadores horríveis, num sítio horrível chamado CIIST (Centro de Informática do Instituto Superior Técnico), nas caves do mesmo pavilhão. Eram os códigos de um programa em C, já não sei para que aplicação (mas teria a ver com a “sua” teoria do caos), que quis partilhar, todo entusiasmado, com os seus alunos.
Era nosso professor de Álgebra Linear. A Álgebra Linear é uma cadeira fundamental para qualquer curso em que a Matemática seja relevante, muito fácil, quase trivial, mas demora um semestre para um caloiro se aperceber disso (não tem nada a ver com o que se estuda no secundário). O Sousa Ramos não ajudava muito a que um caloiro se apercebesse disso, pois era ele próprio, nas aulas, que declarava que aquilo tudo era muito fácil (mesmo que ninguém estivesse a perceber nada): interessante mesmo era o caos, os atractores estranhos, os fractais. Um atractor estranho era cada um dos quadros dele. Começava por escrever uma coisa num sítio, depois passava a outra num sítio completamente diferente, e assim durante a aula o quadro se ia enchendo, de uma forma completamente desordenada. Finalmente não havia mais espaço para escrever, no meio daquela confusão toda. Lá se decidia então a apagar qualquer coisa, para poder continuar a escrever. Qualquer coisa, não: quando ia apagar, escolhia sempre a última coisa que tinha escrito.
Nós olhávamos para aquilo, saudosos do liceu de onde tínhamos acabado de sair, e meio assustados. Só não estávamos completamente assustados porque ele não assustava ninguém. Era impossível não se gostar dele. O cabelo meio desgrenhado, as barbas grisalhas, a voz afável, e os olhos. Nunca até hoje vi uns olhos tão bondosos como aqueles.
Como acontece muitas vezes, no contacto pessoal, na discussão individual com os alunos, era diferente. Podia passar quase uma tarde com um aluno para lhe tirar uma dúvida. A sua paciência era infindável; se lhe punham uma questão directamente, gostava que essa questão ficasse bem esclarecida.
Também foi com ele que fiz um dos primeiros exames do ensino superior. O exame era conceptualmente bastante fácil, por vezes directo. Uma primeira leitura deixáva-nos tranquilos: era um exame dado, sabia-se fazer tudo, era só “fazer as contas”. O problema é que o exame continha a épica “matriz que não queria ser invertida”: uma matriz quatro por quatro, com entradas que eram todas números inteiros de 1 a 9 (módulo o sinal), que era suposto invertermos. Tinha determinante sete mil e qualquer coisa... Era a pergunta mais fácil daquele exame facílimo. E não houve ninguém que a respondesse, depois de passar um tempo muito precioso a somar fracções com numerador com quatro dígitos... por dezasseis vezes. Foi o exame mais fácil que eu vi na vida. E foi uma desgraça. Lembro-me da surpresa dele com a nossa atrapalhação, e da candura com que assumiu que “não esperava” que fosse tão difícil: “o Mathematica [software de computação simbólica] tinha “cuspido” a resposta num instante!” Felizmente havia uma coisa chamada “segunda época”, e as matrizes para esse exame foram por ele invertidas à mão.
Nunca mais foi meu professor, mas continuei a vê-lo estes anos todos, sempre que regressava ao Técnico. Quis sempre saber de mim e ficávamos uns minutos a conversar. Mostrava-se sempre entusiasmado com o seu trabalho. E falava às vezes do Alentejo, do bom azeite que recebia e que era produzido nas terras que a família possuía no concelho de Moura. Era a única contrapartida que pedia à cooperativa de agricultores local para usarem as suas terras, e era somente para uso pessoal. Não queria ter nada a ver com a venda desse azeite, nem receber nenhum tipo de percentagem das receitas dessa venda: “são os agricultores que produzem o azeite, e são eles que devem receber o dinheiro pelo seu trabalho”, disse-me ele uma vez.
Nunca fumou na vida, mas morreu com um cancro no pulmão galopante, durante o sono, tinha o ano de 2007 poucas horas. Deixa-nos, sobretudo à família (mulher, filhos e neta), mas também a todos os outros que o conheceram, mais pobres.

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