Tuesday, February 20, 2007

Ainda o Mapa do Referendo

Quando escrevi o post anterior, ainda a procissão ia no adro, posteriormente, tornou-se o principal motivo de análise dos resultados eleitorais.
Confirmando aquilo que tinha dito, a maioria dos comentadores da direita e, muita vezes, alguns dos adeptos do sim, tentaram retirar a Igreja Católica da lista dos derrotados do Referendo e negam que haja qualquer relação entre a sua influência e a distribuição dos não. Valha-nos o inefável César das Neves que escreve um artigo sobre A enorme derrota da Igreja (Diário de Notícias, 19/02/07).
Mas voltemos ao mapa dos resultados eleitorais. O Público (18/02/07) afirma em título que O voto católico não existiu no referendo sobre o aborto, depois, utilizando aquela sopa muito do agrado dos jornalistas, vai amontoando opiniões de estudiosos que, espremidas, levam à conclusão do título. Assim, temos algumas sentenças que são do senso comum: “a repartição faz sentido se o factor religiosos não for isolado” (Alfredo Teixeira) ou “a influência religiosa é mais determinante no sentido do voto do que (o eleitor) ser da zona rural ou urbana” (José Barreto) ou que resultam da superioridade intelectual de quem já tem outro nível de conhecimento: “teríamos ainda um certo paternalismo das elites intelectuais anticlericais” (Helena Vilaça).
Mas este é o fait divers das pequenas almas, falta-nos as opiniões dos grandes comentadores. Rui Ramos, esse pequeno provocador da direita, tem no Público (14/02/07) esta prosa bem informada: “as esquerdas em Portugal acreditaram sempre que a “modernidade” consistia numa simples versão laicista da homogeneidade católica, todos um dia seriam “homens de esquerda” (inclusive as mulheres). Foi o que aprenderam com Auguste Comte. O progresso iria consistir no triunfo total do secularismo socialista... Foi assim que Afonso Costa, em 1910, se convenceu de que poderia acabar com o catolicismo em “duas gerações”. O que aconteceu a seguir é conhecido. Mas, pelos vistos, houve quem não tivesse aprendido nada. As esquerdas portuguesas dão-nos as boas-vindas ao século XXI com as ideias do século XIX”.
Constança Cunha e Sá, sem a erudiçãozinha de Rui Ramos, pois não é Historiadora, afirma igualmente no Público (15/02/07): “Embora a esquerda, com o seu incurável optimismo, se refugie mais uma vez, no improvável progresso da história para saudar efusivamente a entrada de Portugal no século XXI, só muito dificilmente o mapa eleitoral deste fim-de-semana se presta a este tipo de simplificações. Nem o distrito de Braga, onde ganhou o “não”, se pode tomar como um exemplo de “arcaísmo” e de “ruralidade”, nem o Alentejo, pobre e desertificado, preenche os requisitos mínimos que se exigem à “modernidade”.”
Em primeiro lugar, assinalar a irritação que o cartaz do Bloco de Esquerda provocou nas hostes da direita. O Bem-vindo ao Século XXI pô-los possessos.
Em segundo, alguns comentários de fundo. Como demonstra André Freire (Público, 19/02/07) existe uma correlação claramente positiva entre as zonas onde se verifica maior prática religiosa e o voto do não. Por isso, não faz sentido negar que o não não venceu em zonas de maior influência Católica. Olhando para o mapa da votação por conselhos publicado no Público (12/02/07), verifica-se que a vitória do não ocorreu na totalidade dos distritos de Braga, Bragança, Vila Real e nas duas Regiões Autónomas. Na maioria dos concelhos de Viana do Castelo, Viseu, Aveiro e Guarda, nestes dois últimos com a excepção notória das capitais de distrito, e ainda na Zona do Pinhal, localizada no Centro do país e que abrange concelhos dos distritos de Castelo Branco (Sertã, Vila do Rei, Proença-a-Nova), Santarém (Ferreira do Zêzere) e Leiria (Ansião, Alvaiázere, Figueiró dos Vinhos). O concelho de Ourém (distrito de Leiria), onde se localiza Fátima, está incluído nesta mancha central. Tudo o mais são vitórias do sim. Só por grande má-fé se pode negar que esta distribuição não corresponde ao voto Católico. É evidente que, como também nota André Freire, há uma correlação positiva, em relação ao voto do não, entre as votações para o Referendo e para a Assembleia da República (2005) do PP-CDS e do PSD, mais deste último do que do primeiro. Por isso, é uma verdade de La Palisse dizer que o factor religioso não está isolado. No post anterior interrelacionei a componente religiosa e política. Lembraria igualmente que a conspiração contra as forças revolucionárias no pós 25 de Abril teve um dos seus esteios na Sé de Braga, na figura do Cónego Melo.
Há depois a questão do voto rural e urbano e aqui uma das citações a que recorri, chega à brilhante conclusão de que o sentido do voto é mais religioso do que a resultante da dicotomia urbana rural. É o que tenho vindo a dizer. Mas este tema serve a Constança Cunha e Sá para falar da moderna Braga que vota não e do Alentejo rural que vota sim, pondo assim em causa a classificação do Norte como arcaica e do Sul como moderna. No entanto, se compararmos as diferenças entre o não e o sim na cidade de Braga e em conselhos rurais desse distrito verifica-se que nestes últimos a diferença é muito maior, a favor do não. Mesmo no Norte não é indiferente estar em cidades médias ou no campo (veja-se os casos já citados de Aveiro e Guarda). A Igreja Católica tem muito mais influência neste meio do que naquele.
Por outro lado, Constança Cunha e Sá simplifica e pretende fazer graça com os alentejanos a votarem na modernidade e os trabalhadores de Braga a votarem no arcaísmo. Esquece, no entanto, que o que esteve em causa foi a oposição entre a laicidade e a liberdade individual de cada um, que são conceitos das Luzes, da Revolução Francesa, da modernidade civilizacional europeia, e a obrigatoriedade de forçar a sociedade a cumprir as leis impostas pela moral da Igreja, no fundo semelhante à imposição das regras do Corão às sociedades muçulmanas. Neste caso os pobres alentejanos estão com a modernidade e algumas das trutas da medicina estão os com os valores conservadores e retrógrados. Venceu o progresso e é isso que a direita não admite e tudo tem feito para minimizar esta sua derrota.
Deixei para o fim o Sr. Rui Ramos, Historiador, com H maiúsculo. Impressionado com os conhecimentos que tem de Auguste Comte e da política anticlerical de Afonso Costa, foi incapaz de compreender que o país há muito mudou. A questão religiosa deixou de ser uma bandeira da esquerda. Na longa noite do fascismo, que aquele senhor provavelmente nunca conheceu, os comunistas e a oposição em geral sempre estenderam a mão aos católicos. No pós 25 de Abril a moderação com que o PCP e o PS trataram o problema religioso foi exemplar. O único afloramento foi a questão do divórcio, que foi resolvida sem grandes rupturas. E que grandes culpas tinha a Igreja no apoio dado a Salazar, avalizando a tortura, as prisões, a Guerra Colonial, favorecendo a ideologia oficial e apoiando activamente a censura e a supressão de tudo aquilo que traduzisse, aos seus olhos, qualquer licenciosidade. Há muito que a esquerda se deixou do simplismo da I República, para quem a abertura de uma escola correspondia ao fecho de uma igreja. A esquerda ultrapassou, para infelicidade do comentarista, o positivismo comtiano que relacionava o acesso à educação coma diminuição da crença religiosa. Portanto, o Sr. Rui Ramos aldraba quando diz que as esquerdas portuguesas não aprenderam nada depois da I República, ele é que continua a manter o mesmo ódio a tudo o que é progresso e transformação das mentalidades.
PS.:noutro blog apareceu simultaneamente uma crítica ao texto de Rui Ramos. Sem a acrimónia que aqui lhe manifesto, parece-me ser uma análise bastante fundamentada ao referido comentário. Preocupei-me unicamente com a sua afirmação de que a esquerda não tinha aprendido nada depois da I República, António Figueira, e bem, desmonta todo o texto. Os meus parabéns.

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