É difícil discutir-se uma lei num país onde ninguém cumpre as leis. Mesmo que o referendo não seja sobre uma lei específica (o que seria inconstitucional), mais do que qualquer outro povo os portugueses apregoam uma moral e praticam outra. Toda a gente acha bem que haja limites de velocidade, e no entanto muitos condutores circulam em excesso de velocidade, pelo menos de vez em quando.
E é assim que a esmagadora maioria dos portugueses é favorável à despenalização do aborto, que, como já foi tantas vezes explicado, é só – e nada mais do que isso – o que está em votação no referendo. As previsões das sondagens, mesmo pondo o "sim" em vantagem, estão longe de reflectir tal opinião. Há uma percentagem muito significativa de portugueses favoráveis à despenalização, mas que reprovam a prática do aborto. Devem ser provavelmente estes os eleitores que ainda podem estar indecisos, e serão estes a decidir o resultado final do referendo.
É directamente a este segmento do eleitorado que Marcelo Rebelo de Sousa se tem dirigido. Marcelo conhece como pouca gente o povo português, é um bom comunicador e sabe fazer-se entender, mesmo quando quer manipular os seus espectadores. E tem apelado para que votem no "não".
Este tipo de eleitor é facilmente persuadido pelo "não", pelos motivos que comecei por referir. Particularmente num país onde tanto impera o "faz o que eu digo, não faças o que eu faço". Mas mesmo muitos eleitores cuja prática é conforme aos valores que defendem julgam que não haver uma lei que penalize o aborto equivale a aprová-lo. Só quetal não tem de ser verdade. Como foi bem explicado por Vital Moreira no último "Prós e Contras", o Código Penal não deve ser necessariamente um código moral. Mas é difícil convencer quem quer queseja desta distinção, dadas as questões morais envolvidas. Marcelo Rebelo de Sousa, mesmo com uma argumentação confusa e contraditória, bem tem tentado convencer o oposto, confundindo deliberadamente as duas coisas e iludindo os seus espectadores.
Para tentar convencer estes eleitores indecisos há que esclarecer este aspecto definitivamente. E há que demonstrar que o que se pretende é, como disse Bill Clinton (muito oportunamente citado por Paula Teixeira da Cruz, uma das grandes revelações desta campanha), tornar o aborto – até às dez semanas - "legal, mas seguro e raro". O essencial, o mais importante, e esta é a mensagem que é preciso passar, é que só se pode tornar o aborto seguro e raro legalizando-o. Quem quer combater o aborto tem de se convencer de que este não pode ser combatido pela lei. Por isso, votar no "não" para combater o aborto é inútil. Se se quer combater o aborto, não se pode fingir que ele não existe. Mas é isso que faz a campanha do "não", que fala do aborto como se ele só passasse a existir no dia em que fosse legalizado. Votar no "não", assim, só serve para manter as aparências. E manter tudo na mesma.
Publicado originalmente no Cinco Dias.
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
Blog Archive
-
▼
2007
(1051)
-
▼
February
(111)
- Grandes momentos
- A melhor hoax dos últimos tempos
- Por motivos surpreendentemente profissionais (isto...
- Carnaval na Mealhada - o Rei não ia nu
- Carnaval na Mealhada - Tropicália
- Carnaval na Mealhada - a realeza dos bambas que qu...
- Carnaval na Mealhada - o desfile
- The Really Really Everlasting Man
- Not lovin' it
- Bella Italia - onde a esquerda é sinistra
- Sabem o que é isto ?
- Fitness
- Oscars™ - what could have been
- Parabéns, Mr. Gore!
- Parabéns, Mr. Scorsese!
- Oscars™ - previsões
- Espaços onde se pode espirrar
- O português mais português que eu conheci
- Quando as letras não pagam as expectativas
- The Modern Lovers
- E tudo se acabou na quarta feira
- Um carnaval sem samba
- Martin, the unfuckable
- E o centenário de John Wayne é logo a seguir
- 39º
- Ainda o Mapa do Referendo
- A música dele, sim, é de levantar poeira
- O Ano (chinês) do Porco
- A minha música não é de levantar poeira
- Domingo, gordo
- Auto-referencialidade (9)
- Auto-referencialidade (8)
- A esquerda "carnívora" e a esquerda "vegetariana"
- Viva Las Vegas
- Publicidade
- Para acabar de vez com o tema do referendo - a blo...
- O Mapa da Distribuição dos Votos no Referendo
- You have, of course, just begun reading the senten...
- Auto-referencialidade (7)
- Auto-referencialidade (6)
- Auto-referencialidade (5)
- Auto-referencialidade (4)
- Auto-referencialidade (3)
- Auto-referencialidade (2)
- Auto-referencialidade (1)
- Não me entendi com Babel
- Argumento literário a favor do celibato
- O maior vencedor do fim de semana
- O maior derrotado do fim de semana
- This blog ain't got no manners
- Ask not what Wikipedia can do for you
- Click here
- Pavloviana
- Hoje ouve-se - actualização
- O sorriso de Cristas
- O momento mais espectacular do fim de semana
- Os grandes derrotados do fim de semana (II)
- Reflexões sobre o referendo - Final
- Os números da vitória
- O terramoto não foi só político
- Os grandes derrotados do fim de semana (I)
- Coroa L
- Quédate conmigo hasta el final
- Hoje ouve-se
- Fá-lo por gosto
- CUBA 2007
- Tenho mesmo de arranjar um emprego
- Encubramos a nossa nudez com bandeiras
- Calúnias
- The Incalling
- Coisas que se aprendem no pub
- Um grande peruano
- Outro grande português
- Um grande português
- Alguns textos
- O vídeo
- Reflexões sobre o referendo IV - Os "radicais" e o...
- Highlandofilia
- Bem, isto por aqui está tudo branco
- Para nos livrarmos da praga...
- “Páginas da Vida”: a SIC em campanha pelo “não”
- Os Clássicos segundo o Dr. Bayard
- Chesterton, o precursor
- O Pastoral Portuguesa feito pelos seus ex-leitores
- Despenalização, descriminalização e lógica simples
- Cock-up (passe a expressão) or conspiracy?
- As Rãs
- Sobre o aborto
- And Then Nothing Turned Itself Inside Out
- Patagónia, um novo "far-west"
- Votar sim, porque o aborto existe
- Did I ever tell you about the man. . .
- Vasco Granjmajer
- «Aquela corrida insípida, sem cavalos, sem jóqueis...
- Slavoj 'Duke Nukem' Zizek
- Reflexões sobre o Referendo III - Quando Começa a ...
- S. Cruz de Almodôvar
- Um artigo, um cavalo, uma serenata e dois acrónimos
- Planos para o fim de semana
- Desta vez fui eu
-
▼
February
(111)
No comments:
Post a Comment