Wednesday, February 7, 2007

Despenalização, descriminalização e lógica simples

Basta um raciocínio de lógica elementar para se perceber que, dada a pergunta que vai ser referendada, as propostas de Rosário Carneiro, Laurinda Alves e Marcelo Rebelo de Sousa não têm cabimento. A dúvida que possa surgir resulta da confusão entre “penalização” e “criminalização”. Eu não tenho nenhuma formação jurídica, mas parece-me óbvio que tudo o que é penalizado pelo Estado tem antes de ser um crime. O oposto, no entanto, não é necessariamente verdade: há crimes que podem não ser penalizados. Na linguagem da Teoria de Conjuntos, as condutas penalizáveis são um subconjunto das condutas criminalizáveis. Da mesma maneira, e de acordo com a mesma teoria dos conjuntos, as condutas não criminalizáveis são um subconjunto das condutas não penalizáveis. O que acabei de escrever traduz-se, em linguagem comum, por “o Estado não pode penalizar o que não é crime”.
Pelo que expus, é bem diferente responder “sim” ou “não” consoante o que estiver em causa for a descriminalização ou a despenalização. Um “sim” à descriminalização implica um “sim” à despenalização. Um “não” à despenalização implica um “não” à descriminalização. Por isso, estando em causa a despenalização, e ao contrário do que geralmente é referido pela campanha do “não”, a resposta “sim” é mais abrangente do que a “não”. Se estivesse em causa a descriminalização, o “não” seria mais abrangente, mas é a despenalização que está em causa na pergunta do referendo que, recordo, foi aprovada pelo Parlamento e pelo Tribunal Constitucional e promulgada pelo Presidente da República. E o “sim à despenalização” é mais abrangente porquê? Porque é a única resposta que inclui a única solução de compromisso possível: a criminalização do aborto sem a sua penalização. É isto que em certas circunstâncias (não necessariamente sobre o aborto) já se fazia “na Roma antiga”, como lembrou no debate “Prós e Contras” a moderadora Fátima Campos Ferreira. É esta solução de compromisso que defende Marcelo Rebelo de Sousa. É este o conteúdo da proposta de lei de Rosário Carneiro. Reparem: sem penalização. Portanto, quando se pergunta sobre a despenalização a resposta só pode ser “sim”. É só isto que está em causa no referendo, e tudo o mais é uma mistificação que tem como objectivo confundir as pessoas. Se fossem coerentes, Rosário Carneiro e Marcelo Rebelo de Sousa só poderiam votar “sim” à despenalização. Mas não: Marcelo Rebelo de Sousa, Rosário Carneiro e os eleitores do “não” não querem a descriminalização e nem sequer a despenalização. Quem viu um advogado como António Pinto Leite, no programa “Prós e Contras”, a apelar (textualmente) à descriminalização do aborto, que defende ser amplamente consensual na sociedade portuguesa, mas a apelar ao mesmo tempo ao voto no “não” à despenalização, só pode concluir que estas propostas de aparente “moderação” por parte dos apoiantes do “não” constituem um enorme embuste.
Se os portugueses no próximo dia 11 votarem “não” à despenalização, estão a votar por manter a penalização (e, logo, a criminalização) do aborto. Nestas circunstâncias não é possível uma solução de compromisso. Pedir uma solução de compromisso e apelar ao voto no “não” à despenalização só tem um nome: hipocrisia. A única alteração que se poderia fazer na lei seria mudar o tipo de penalização (mas mantendo uma penalização): uma proposta do género da apresentada por Bagão Félix, que manteria sempre necessariamente o estigma da criminalização, do julgamento e da humilhação da mulher. Por isso, quando José Sócrates garante que não haverá alterações à lei no sentido da despenalização se o “não à despenalização” no referendo ganhar, não está a ser casmurro e nem a fazer birra: está a garantir que se cumpre aquilo que a maioria determinar. É da democracia. E é da Teoria dos Conjuntos.
É claro que poderão apontar-me que a pergunta do referendo não se refere só à despenalização do aborto, pura e simples: põe mais condições. (Se quiserem, na linguagem da Teoria de Conjuntos, as restrições impostas pela pergunta fazem com que as situações em que o aborto poderá ser despenalizado, em caso de vitória do “sim”, são um subconjunto de todas as situações em que o aborto poderia eventualmente ser despenalizado.) E ainda bem que põe mais condições: julgo que qualquer pessoa de bem é contra a despenalização pura e simples do aborto, se não for sob certas condições. Teoricamente é possível uma pessoa ser favorável à despenalização mas votar contra, por discordar de alguma das restrições impostas. Mas de qual restrição se poderia discordar? Das dez semanas? Mas quando haveria o aborto de ser permitido? Sem prazo? Ou com um prazo tão curto que não permitisse à mulher aperceber-se da gravidez? Também poderia discordar-se de o aborto ter de ser feito num estabelecimento legalmente autorizado, mas onde é que se iria autorizar então o aborto? Em casa? Noutro sítio qualquer, longe de pessoal qualificado e equipamento especializado, com risco para a saúde? Finalmente poderia discordar-se de o aborto ter de ser realizado por vontade da mulher, mas discordar disto implica necessariamente aceitar que o aborto possa ser realizado contra a vontade da mulher. É isto, e só isto, que significa discordar da condição “por vontade da mulher”. Mais uma vez é da Teoria dos Conjuntos.
Finalmente, poderia votar-se “não” não por discordar das restrições apresentadas, mas por achar que são poucas, por se querer mais restrições. Não será este o caso de Marcelo Rebelo de Sousa, que já acha a pergunta “muito complicada”. Mas poderia ter sido o caso da deputada Rosário Carneiro, que poderia ter posto as suas objecções à pergunta no local próprio, o Parlamento, e na altura exacta. Isto se estivesse realmente interessada na despenalização do aborto. Por só se ter lembrado da sua proposta na última semana da campanha, só pode concluir-se que não está interessada de facto na despenalização e só quer iludir os eleitores.
Não conheço e não concebo ninguém, em nenhum país do mundo, no seu perfeito juízo, que defenda a despenalização do aborto e discorde de restrições do género das que são impostas na pergunta do referendo. Por isso pode-se afirmar, e deve ficar claro, que quem vota “não” no referendo do próximo dia 11 é pela criminalização e pela penalização do aborto.

Também publicado no Sim no Referendo.

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